28 abril 2008

os nós da escrita





Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.

Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.

Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.

Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.








luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




corridor in the asylum








vincent van gogh
(dutch, zundert 1853 - 1890 auvers-sur-oise)
dutch
corridor in the asylum, september 1889; 19th century
bequest of abby aldrich rockefeller, 1948 (48.190.2)
the metropolitan museum of art


24 abril 2008

noite de abril






hoje, noite de abril, sem lua,
a minha rua
é outra rua.


talvez por ser mais que nenhuma escura
e bailar o vento leste
a noite de hoje veste
as coisas conhecidas de aventura.


uma rua nova destruiu a rua do costume,
como se sempre nela houvesse este perfume
de vento leste e primavera,
a sombra dos muros espera
alguém que ela conhece.


e às vezes, o silêncio estremece
como se fosse a hora de passar alguém
que só hoje não vem.










sophia de mello b. andresen
obra poética I
caminho
1999


21 abril 2008

nesse dia






*

nesse dia ele parecia-se tanto consigo que se confundia,
tal como o dia se confundia consigo mesmo
e a confusão a ambos confundia


*






per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004





17 abril 2008

a função do geógrafo





1.


Se quiseres que eu me perca
buscarei outra ilha.
Esperarei a sombra diante dos olhos,
o milhafre na ravina de crisântemos.
Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera,
acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.
Não te esqueças,
aprendi um dia como deus nos traz um sono
leve que nos cega.








rui coias
a função do geógrafo
quasi edições
2000





16 abril 2008

memória







e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

num lugar mais seguro
que uma fotografia
ou um poema








gil t. sousa
água-forte
2007




10 abril 2008

há sede nos cantos da boca






há sede nos cantos da boca encerrada para obras
películas brancas brotam dos caminhos para o beijo
regos de águas paradas enxameiam as planuras
das aguarelas encaminhadas no sentido inverso
da nostalgia

a menina deixa a saia de tule branco
para usar uns calções de pele genuína
esganado que foi o animal da sua alma

saem-lhe perfumados chifres da cabeça
entontecida
os problemas respiratórios agravam-se
com a boca fechada para obras
os beijos perdem o norte
e enrolam-se nas palhas dos trigos ceifados
nas planuras aguareladas
repletas de nostalgias remanescentes







m.f.s.






09 abril 2008

carta da infância





Amigo Luar:


Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te ouço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.







carlos oliveira
trabalho poético
sá da costa
1998





07 abril 2008

tu anseias?!






- Alguma vez anseias?
- Se anseio?!... Se eu anseio?
- Eu anseio.
- Tu anseias?!
- Anseio, pois!... Muitas vezes sento-me e anseio!... Já ansiaste?
- Recentemente, não. Suspirei. Passo o tempo a suspirar. Estou sempre a suspirar!... Mas não ansiei.
- Olha para ti.
- Kramer, não comeces.
- Estás a desperdiçar a tua vida.
- Não estou nada. Aquilo a que chamas desperdiçar eu chamo viver. Estou a viver a minha vida.
- Ah, estás?! Tudo bem. Diz lá!... Tens emprego?
- Não.
- Tens dinheiro?
- Não.
- Tens uma mulher?
- Não.
- Tens perspectivas?
- Não!
- Tens alguma coisa no horizonte?
- Não.
- És minimamente activo?
- Não!
- Tens alguma razão imaginável para te levantares de manhã?
- Gosto de comprar o Daily News.
- George, está na altura de crescermos… e de nos tornarmos homens. Deixarmos de ser catraios.
- Porquê?
- Vou para a Califórnia. Estou com o bichinho.
- Parece que também estou a sentir qualquer coisa.
- Com o bichinho de actor. Desde que entrei no filme do Woody Allen.
- “Estes pretzles dão-me sede” ?! Foi uma deixa. Foste despedido.
- Eu sei, eu sei, mas, caramba nunca me senti tão vivo. Vens comigo?
- Não, não vou.
- Certo, como queiras, mas isto que fique aqui entre nós. Agora, somos irmãos de chave.
- Não vais mesmo para a Califórnia, pois não?
- Aqui… na cabeça, já fui.






seinfeld
diálogo entre kramer e george costanza
episódio 23
jerry seinfeld, carry charles
trad. Isabel monteiro, ideias & letras
sic radical