30 setembro 2016

luis antonio de villena / acerca dos anjos na poesia



(Jorge de Sena)


É verdade que ao dizer anjo podamos a realidade,
o que não significa negar que há corpos que se compram
nem tão-pouco o difícil do choque entre vidas opostas
(chame-se amor, camaradagem, vida em comum
ou qualquer outra relação que concilie oposição, torneio).
Ao dizer anjo fazemos uma súplica,
pedimos mais realidade e, simulando um truque metafísico,
postulamos a plenitude do corpo,
a queimadura sanguínea. (Não se oculta impureza.)
Há corpos que se compram – mas, claro, amigo –
e há sordidez e barro, palavras afiadas
e deslizes de sombra… (Toquei cinza.)
Mas também há corpos que se oferecem
 – e incluem a alma no conjunto –
e aí também há sordidez,
com manhãs muito ácidas, súbitos desencantos
que desmoronam tudo
(embora possa voltar a levantar-se,
pois existem amantes que semelham estimáveis
arquitectos e até serventes de pedreiro).
Ao dizer anjo não se é generoso
nem retórico, sem mais,
entende-se, apenas, que o mundo é imperfeito
mas que há rastos, sinais, rostos
de outra realidade que o saturnal invoca.
Ao dizer anjo pede-se morte, proclamando vida.
Ao dizer anjo – é certo – designamos o inumano,
o resplendor celeste de singulares humanos
que existem, e não existem, eleitos.



luis antonio de villena
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985




29 setembro 2016

arsenii tarkovsky / o espelho



II
Ontem fiquei à tua espera desde manhã.
Eles sabiam que não virias,
eles adivinhavam.
Lembras-te como o dia estava lindo?
Um feriado! Eu não precisava de casaco.
Hoje vieste, e aconteceu
que o dia foi cinzento, sombrio, e chovia, e era algo tarde,
e ramos frios com gotas escorrendo.
As palavras não podem consolar,
nem os lenços enxugar.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975



28 setembro 2016

manuel alegre / e o bosque se fez barco



Já meu pais foi uma flor de verde pinho.
País em terra. (E semeá-lo uma aventura).
Depois abriu-se o mar como um caminho.
Depois o bosque se fez barco e o barco arado
dessa nova e fatal agricultura:
colher no mar o fruto nunca semeado.


manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974



27 setembro 2016

fiama hasse pais brandão / lápides


I
O mar bate como se o sopro
do separar as águas de novo
rasgasse a terra alcantilada.
Não o vejo, mas ao longe
oiço o êxtase, o rumor
das ondas infinitamente. Nós
calamo-nos, ouvindo a voz
interior apenas, e pensamos
nos livros que consubstanciam
a separação entre terra e água.



fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000



26 setembro 2016

carlos de oliveira / o círculo



Caminho em volta desta duna de cal, ou dum sonho mais parecido com ela do que a areia, só para saber se a áspera exortação da terra, o seu revérbero imóvel na brancura, pode reacender-me os olhos quase mortos.

O que eu tenho andado sobre este círculo incessante, e ao centro o pólo magnético ainda por achar, a estrela provavelmente extinta há muito, possivelmente imaginada, conduz-me sem descanso, prende-me como um íman ao seu rigor já cego.



carlos de oliveira
terra da harmonia
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998




25 setembro 2016

bernardo soares / as coisas modernas são...



As coisas modernas são

(1) A evolução dos espelhos
(2) Os guarda-fatos

Passámos a ser criaturas vestidas, de corpo e alma. E, como a alma corresponde sempre ao corpo, um traje espiritual estabeleceu-se. Passámos a ter a alma essencialmente vestida, assim como passámos — homens, corpos — à categoria de animais vestidos.

Não é só o facto de que o nosso traje se torna uma parte de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa qualidade de não ter quase nenhuma relação com os elementos da elegância natural do corpo nem com as dos seus movimentos.

Se me pedissem que explicasse o que é este meu estado de alma, através de uma razão sensível, eu responderia mudamente apontando para um espelho, para um cabide e para uma caneta com tinta.
s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982



24 setembro 2016

tonino guerra / o banho dos pobres



Os pobres da minha terra
tomam banho no rio
e estão de molho na água
um dia inteiro.
Ali há muito ar muito sol muitos borrifos.
Voltam quando é noite
Encontram outra vez as velhas casas
com as cabeças dos gatos aos janelos
e toda a água nos cântaros represa.


tonino guerra
tradução de alexandre o’ neill
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



23 setembro 2016

julio cortázar / plano para poema



Seja em Roma a de Faustina, que o vento aguce as penas de chumbo do escriba sentado, ou em trepadeiras centenárias um dia apareça escrita esta frase convincente: Não há trepadeiras centenárias, a botânica é uma ciência, bolas para os inventores de imagens pedantes. E Marat na banheira.

Também vejo numa bandeja de prata uma perseguição a um grilo, a senhora Délia que suavemente aproxima a mão semelhante a um substantivo (o Faraó que os amaldiçoava da margem enquanto passavam a vau) quando vai apanhá-lo o grilo já se pirou para o sol ou salta para o delicado mecanismo que da flor do trigo extrai a mão seca da torrada. Senhora Délia, deixe esse grilo andar por pratos rasos. Um dia cantará com tal terrível vingança que os relógios de pêndulo se enforcarão nos seus ataúdes parados, ou a criada de quarto dará à luz um monograma vivo que correrá pela casa toda repetindo as suas iniciais como um tocador de tambor. Senhora Délia, as visitas impacientam-se porque está frio. E Marat na banheira.

Que seja por fim Buenos Aires num dia liberto e tremente, com roupas ao sol e todas as telefonias do bairro vomitando ao mesmo tempo a cotização do mercado livre de girassóis. Por um girassol sobrenatural alguém em Liniers pagou oitenta e oito pesos e o girassol teve um comportamento muito mau para o repórter Esso, um bocado por cansaço aquando da contagem das suas sementes, e também porque o seu destino ulterior não figurava no boletim de venda. Ao entardecer haverá uma concentração das forças vivas na Plaza de Mayo. As forças irão por distintas ruas até equilibrar-se na pirâmide, e então ver-se-á que vivem graças a um sistema de reflexos instalado pela municipalidade. Ninguém tem dúvidas de que o acto se cumpriu com o máximo brilhantismo, o que provocou como era de esperar extraordinária expectativa. Venderam-se os camarotes, irá o senhor cardeal, os carneiros, os presos políticos, os ferroviários, os relojoeiros, os donativos, as senhoras anafadas. E Marat na banheira.


júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
ocupações raras
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973



22 setembro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho






I

Todo o instante que passávamos juntos
era uma celebração, como uma epifania,
no mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa,
mais leve que a asa de um pássaro,
estonteante como uma vertigem,
corrias escada abaixo
dois degraus de cada vez, e conduzias-me
por entre lilases húmidos,
até ao teu domínio,
no outro lado, para além do espelho.

Quando chegava a noite
eu conseguia a graça,
os portões o altar escancaravam-se,
e a nossa nudez brilhava na escuridão
que caía vagarosa.

E ao despertar
eu dizia “abençoada sejas!”
e sabia que a minha bênção
era impertinente.
Dormias,
os lilases estendiam-se da mesa
para tocar tuas pálpebras
com um universo azul,
e tu recebias o toque
sobre as pálpebras,
elas permaneciam imóveis,
e a tua mão ainda estava quente.

Havia rios vibrantes dentro do cristal,
montanhas assomavam por entre a neblina,
mares espumavam,
e tu seguravas
uma esfera de cristal nas mãos,
sentada num trono ainda adormecida
e – meus Deus do Céu!  – tu  pertencias-me.
Acordavas e transfiguravas
as palavras que as pessoas pronunciam todos os dias,
e a fala enchia-se até transbordar
de poder ressonante,
e a palavra “tu”
descobria o seu novo significado: “Rei”.

Objectos comuns
transfiguravam-se imediatamente,
tudo – o jarro, a bacia – quando,
entre nós como uma sentinela,
era colocada a água, laminar e firme.

Éramos conduzidos, sem saber para onde;
como miragens, diante de nós recuavam
cidades construídas por milagre,
havia hortelã silvestre sob os nossos pés,
pássaros faziam a mesma rota que nós
e no rio peixes nadavam correnteza acima
e o céu desenrolava-se
diante dos nossos olhos.
Enquanto isso o destino
seguia os nossos passos
como um louco de navalha na mão.



arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975






21 setembro 2016

robert hayden / aqueles domingos de inverno



O meu pai levantava-se também cedo aos domingos
e vestia a roupa sob o frio negro-azulado,
depois com mãos gretadas, doridas
do trabalho, às intempéries, nos dias de semana, acendia
belos lumes de carvão. Nunca ninguém lhe agradeceu.

Eu acordava e ouvia o frio a estilhaçar-se, a quebrar.
Quando as salas estavam aquecidas, ele chamava,
e eu levantava-me e vestia-me, sem pressas,
receoso das velhas iras daquela casa.

Falava com ele de uma forma displicente,
a ele que tinha escorraçado o frio
e engraxado também os meus sapatos melhores.
Que sabia eu, que sabia eu
dos ritos austeros e solitários do amor?


robert hayden
antologia de poesia anglo-americana
tradução de antónio simões
campo das letras
2002



20 setembro 2016

miguel torga / talvez eu me engane


Coimbra, 12 de Julho de 1957 – Talvez eu me engane a meu respeito e a respeito dos mais. Mas em matéria de revelação da intimidade de cada um, ainda vou pelo diálogo. As correspondências, pelo simples facto de uma certa opção formal a que a escrita obriga sempre, são fintas petrificadas. Os diários e as confissões, pouco mais ou menos o mesmo. Ora, numa boa conversa a dois, o prestigitador tem ao pé uma atenção a observá-lo. E como a gente não fala só com palavras – porque, desde os gestos à cor da pele, tudo em nós é expressão –,  nessa altura, sim, o sujeito diz. Diz o que quer, e o que não quer.



miguel torga
diário VIII
1959




19 setembro 2016

valter hugo mãe / fosse o corpo só meu


6
fosse o corpo só meu e uma pedra
o atingisse e abatesse.
se a chuva viesse agora pedir para nascer nos
meus olhos e as imagens e fizessem nuvens
do que desejo, descobriria uma
alma e procuraria incansável
a identidade dela.
quando morrer, pulsando na forte corrente
do vento que me vier esconder, descobrirei
uma alma e procurarei incansável
a carne dela


valter hugo mãe
estou escondido na cor amarga do fim da tarde
campo das letras
2000





18 setembro 2016

alberto caeiro / agora que sinto amor



Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.



alberto caeiro
o pastor amoroso




17 setembro 2016

rui lage / 31 de janeiro



A rua é comoção antecipada,
Noutro lugar é a mesma ternura:
Imolar o gesto à mulher amada
Ser-se a madeixa dócil e escura.

Quem as navega e acende? Quem as colhe
Já tão frias nas escadas de metal?
Quem dará graças depois ao que nos tolhe
Após as luzes e os enfeites de Natal?

De qualquer fogueira subir em centelhas,
Em qualquer lume que esfria ser acha
E cheirar teu rosto a maçãs vermelhas.

Peneirar do que declinas o não dito
Ou escrevê-lo até (mas num céu nítido
Que nuvens eu não sigo assim aflito)…


rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002






16 setembro 2016

josé manuel teixeira da silva / adeus



5
Entre vagas e vagas alternadas
partimos sempre da nossa vida inteira
como de uma ilha tão pouco visitada
À deriva das horas submersas
a neve sobre a neve, o rosto da amada
vida que corria com o rio
este último canto sobre as águas


josé manuel teixeira da silva
as súbitas permanências
quasi
2001



15 setembro 2016

herberto helder / em quartos abalados…



Em quartos abalados trabalho na massa tremenda
dos poemas.
Que me olham de tão perto que eu ardo.
Um dia hei-de ficar todo límpido,
ou calcinado nervo a nervo. Ou por me ver
Deus
de um canto das palavras, com sixtinos
dedos pintados em torno à voragem
diuturna, tocando na matéria.
Ininterrupto, eléctrico.
Alguém poderia dar um grito.
Quase morro de medo ao sentir o meu nome.
Penso que apenas numa hora o sangue encharcaria
a roupa de alto a baixo, enquanto
brilha o rosto.

Às vezes Deus torna-me rápido.
Às vezes há um candelabro.
Às vezes há os mortos de que se extrai o mármore

*

In stanze squassate lavoro sulla massa tremenda
dei poemi.
Che mi guardano cosi da vicino che ardo.
Un giorno resterò turro límpido,
o calcinato nervo a nervo. O perché mi vedrá
Dio
da un angolo delle parole, com sistine
dita dipinte intorno alla voragine
diuturna, toccando la materia.
Ininterrotto, elettrico.
Qualcuno potrebbe dare un grido.
Quasi muoiodi paura a sentirei l sangue impregerebbe
i vestitti da cima a fondo, mentre
riluce il viso.

A volte Dio mi rende rápido.
A volte c´è un candelabro.
A volte ci sono i morti da cui s´etsrae il marmo.


herberto helder
flash
empira
roma
1987




14 setembro 2016

manuel antónio pina / algumas coisas



Sair é viver
entrar é morrer.

(do Tao Te King)


A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio daquele que fala se calará.

Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.


manuel antónio pina
o que está atrás de ti
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992



13 setembro 2016

vergílio ferreira / já há oito séculos



Já há oito séculos, meu povo, escreves
A história para os outros.
É tempo agora de escreveres a tua



vergílio ferreira
diário inédito 1944-1949
bertrand editora
2008



12 setembro 2016

paulo da costa domingos / sim



Uns comem, outros
nem por isso, e aqueles
que sim é porque
estava a jeito
e têm estômago
para empurrar tudo
e todos, e todos se se fazem
à oportunidade
pela vida é porque sim


paulo da costa domingos
versos abrasileirados
& etc
2012



11 setembro 2016

vitorino nemésio / o bicho harmonioso



Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os lêem quando eles já são tão leves
Que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstractos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!
Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido,
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz, e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural:
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno ,
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,

Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No  meu buraco vil de bicho harmonioso.

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra,
Estranho fóssil!


vitorino nemésio
o bicho harmonioso
antologia poética
asa
2002




10 setembro 2016

carlos de oliveira / desenho infantil


III

É fácil ver ainda nos cadernos escolares, no espólio que as razões de família acautelaram em arcas protectoras, a cólera das cores, a impaciência dos traços que rasgam o papel: imaginava dunas ocres, chuva a desabar num ímpeto castanho, animais de chifres encarnados resistindo à matança, lobisomens com a violência azul dos cavadores a levantar a enxada, sóis estilhaçados, como se a luz batesse nas janelas e a criança as partisse.


carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001