30 setembro 2017

jorge de sena / requiem de mozart



I

Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.


II

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música da morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.


III

Além do falso ou verdadeiro, além
do abstracto e do concreto, além da forma
e do conceito, além do que transforma
contrários pares noutros par´s também,
além do que recorre ou nunca vem
ao que se pensa ou sente, além da norma
em que o não-ser se humilha e se conforma,
além do possuir-se, e para além
dessa certeza que outro ritmo dá
àquele de que as palavras têm sentido:
lá onde ouvir e não-ouvir se igualam
na mesma imagem virtual do na-
da – é que tu vais, ó musica, partido
o nó dos tempos que por ti se calam.


IV

Tudo se cala em ti como na vida
Tudo palpita e flui como no leito
em que se morre ou se ama, já desfeito
o abraço do momento em que, sustida
a sensação da posse conseguida,
a carne pára a ejacular-se atenta.
Tudo é prazer em ti. Quanto alimenta
esta glória de existir, trazida
a cada instante só do instante ser-se,
reflui em ti, liberto, puro, afiante,
certeza e segurança de conter-se
na criação virtual o renascer-se
agora e sempre pelo tempo adiante,
mesmo esquecido. Em ti, o conhecer-se
deste possível é a paz do amante.




jorge de sena
arte de música  (1968)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972



29 setembro 2017

ezra pound / a água-furtada



Vamos, lamentemos os que estão em melhor
      situação que a nossa.
Vamos, meu amigo, e lembra-te
      os ricos têm mordomos e não têm amigos,
E nós temos amigos e não temos mordomos.
Vamos, lamentemos os casados e os solteiros.

A aurora entra com pés pequenos
      Pavlova dourada,
E estou perto do meu desejo.
E a vida não tem nada de melhor
Que esta hora de claro frescor,
      a hora de acordar juntos.




ezra pound
antologia poética
lustra 1916
tradução m. faustino
editora ulisseia
1960



28 setembro 2017

paul éluard / em espanha



Se em Espanha há uma árvore cor de sangue
É a árvore da liberdade

Se em Espanha há uma boca faladora
Fala de liberdade

Se em Espanha há um copo de bom vinho
É o povo quem o há-de beber.


paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971





27 setembro 2017

nicolás guillén / madrigal




De tuas mãos gotejam
as unhas, num cacho de dez uvas maduras.
Pele,
carne de tronco ardido,
que quando naufragas no espelho, enches
de fumo as algas tímidas do fundo.



nicolas guillen
antologia poética I
tradução de carlos grifo
editorial presença
1970





26 setembro 2017

tomas tranströmer / elegia



Abro a primeira porta.
É um quarto espaçoso e soalheiro.
Um veículo pesado passa na rua
e faz tilintar as porcelanas.

Abro a segunda porta.
Amigos! Vocês beberam trevas
e contudo estão visíveis.

Abro a terceira porta. Um quarto de hotel acanhado.
A janela á para uma rua das traseiras.
Um lampião da rua ilumina o asfalto.
As bonitas sobras da experiência.


tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012




25 setembro 2017

narciso pinto / juras de mora







Servirá o amor –
De plano-poupança para o devir?

Na alma urgem-nos brancas
Enquanto barbeamos projectos ao espelho…
E a felicidade, por certo,
Ficar-nos-á sempre uns números acima…

Ao mínimo infortúnio
O absurdo leva incrédulo as mãos à cabeça!
É nada mais o amor –
Do que um telhado sem fundações;

[a mesa indisposta
e atrasados para a morte,
enquanto não se lava a loiça
com vista a enganar a fome]

Em sendo musgo, somente –
É que nos fundiremos na pedra…

(há gente que acende cigarros
e se assusta.)



narciso pinto
fundos perdidos
pangolim
líricas & patuás
língua morta
2017




24 setembro 2017

alberto caeiro / last poem


(ditado pelo poeta no dia da sua morte)


É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

1920?


alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas completos de alberto caeiro
fernando pessoa
presença
1994




23 setembro 2017

júlio pomar / TRATAdoDITOeFEITO



XIV

     A mão é a vulva  entreabrindo-se ao ser penetrada pelo mundo
os dedos são o falo tacteando os tépidos lábios que o recebem.

A mão ao acordar só quer e pensa
voltar lá onde a obra a espera
e nela se quadra. Esta é
a maneira do real
entrar no mundo: os contrários copulam
entre si. Não há sombra
de um messias qualquer no horixzonte.


júlio pomar
poema TRATAdoDITOeFEITO
dom quixote
2004





22 setembro 2017

vasco graça moura / quando os dias se movem




usamos nalgumas coisas uma violência simples
isso é romper os símbolos que envidraçam o resto
mas parte quem amamos quando os dias se movem
se escolheu os limites para a pele aderir

no fundo de nós mesmos omitem-se tais coisas
e criam-se ficções, defesas, crueldades
dos jogos da aparência (à vista nos perdemos)
e movem-se nos dias seus múltiplos contrários

e contudo se movem se quem amamos fere
e o faz de razão fria ou esquecidamente
e a alegria se torna um torpe imaginários
quem muito amamos mata: vai-nos desinventando



vasco graça moura
instrumentos para a melancolia
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007








21 setembro 2017

anna akhmatova / no quadragésimo ano



5.

Eu, porém, aviso-vos
Que vivo pela última vez.
Nem de andorinha, nem de plátano,
Nem de canavial, nem de estrela,
Nem de água de uma fonte,
Nem de repicar os sinos –
Virei perturbar as pessoas
E os sonhos alheios visitar
Com um gemido insaciado.

1940



anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003







20 setembro 2017

joaquim manuel magalhães / ao rapaz que dorme



Ao rapaz que dorme
surge o corpo do amor.
O que destrói.
Pedras sem adeus.

Sobre o dia do seu coração
cai a tribo do crepúsculo.
Crescem os braseiros,
os sarros, os saques.

Queres que viva e evite a vida?
Ame e evite amar-te?

Os olhos dizem-lhe que não.
O fatigado alarme do corpo
ergue-se noutra chama.

O mundo vai morrer neste poema.



joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985




19 setembro 2017

ana hatherly / supremo viajante



Supremo viajante
o sangue
percorre os seus circuitos
azuis-vermelho-escuros
Obedece aos semáforos do existir


ana hatherly
fibrilações
quimera
2005








18 setembro 2017

tiago nené / este obscuro objecto do desejo





8.
O que tenta ensaiar esta beleza
na sua violência prematura, nas linhas do seu submundo.
Observo-a como um guarda-nocturno
numa fábrica de relógios, procuro-a
com uma fome que me isola de mim. E os vidros e as vidas
desta fábrica tornam-se um sequestro da mesma realidade
que entre o futuro e o futuro do futuro
espreita o cruzamento de todo o tempo.

Sob a estrela cadente o céu atravessa todos os nomes,
não sei se faz vento interior ou sobram átomos
de matérias que procuram a inutilidade das coisas.
Escuto uma lua  de açúcar pela garganta das nuvens,
não estou do lado de fora da memorização da espera
e do eco soterrado de um pó evanescente.

Que membros húmidos recebem o hálito do caminho,
que vertigens sobre o torpor das janelas.
Sinto a eficácia mecânica das emoções,
cada sintonizador absorvendo os limites
de uma fissura de luz.

                                                                                   
                                                                      Barcelona



tiago nené
este obscuro objecto  do desejo
guerra &  paz
2017






17 setembro 2017

bernardo soares / átrio (só átrio) de todas as esperanças




Átrio (só átrio) de todas as esperanças, Limiar de todos os desejos, Janela para todos os sonhos (...)

Belveder para todas as paisagens que são floresta nocturna e rio longínquo trémulo do muito luar...

Versos, prosas que se não pensem escrever, mas sonhar apenas.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982



16 setembro 2017

luís veiga leitão / carta de chamada



Latitude Norte 1 de Janeiro


Meu irmão: Porque não vieste?
Ando no mar  Sou marinheiro
Mal sabes o bem que tu perdeste


Vagamos de porto em porto
como as aves de ramo em ramo
Por isso quando te chamo
ao romper do novo ano
sou mais livre e mais humano

E tu irmão absorto?


tu irmão absorto
de fronte caída
nos mapas onde o mar é morto
e morta a vida?


Deixa os teus horizontes pequenos
e vem meu irmão e meu amigo
vem ver ao menos
o mar que trago comigo



luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964



15 setembro 2017

josé ángel cilleruelo / bairro alto



1
Tudo tem aqui o mesmo abandono:
um quarto com janelas
para a rua e um corpo sem desejo
diante da chuva. Uma mulher que passa
– a luz presa debaixo das meias –
e que desaparece, deixa
o eco de um gemido na pupila
e a saliva quente do suor
na memória.
                       Hotel sem graça,
uma jarra com água à cabeceira,
uma revista dentro do armário,
o fio com um menino Jesus
sobre o decote, e a mão – a minha mão –
percorre o náilon.
                                 Agora as páginas
do diário devolvem-me esta noite,
fria noite num quarto frio.

Para que servirá a inteligência?
Um número na porta, um cheiro acre.



josé ángel cilleruelo
salobre
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004





14 setembro 2017

paulo da costa domingos / circo



Este latagão bebe vinagre,
cospe bolas de sabão e sabe
leis em que finge que acredita.

Com os dentes ao desleixo,
dissimula-se sob grande ares
patrióticos mas empresariais.

No mais, recebe salário como
tantos outros empreendedores
no silêncio de colarinhos brandos.

Preço pago por apertos de mão
dúbios nos becos ínvios onde
larvas d´ilusão piscam mal dormidas.

Estrangula-o na carótida o nó
da gravata, rouba quanto pode
e segue distribuindo cumprimentos

no incumprimento geral.



paulo da costa domingos
conflito
a céu aberto
averno
2017