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27 março 2024

daniel francoy / claridade



 
Se ao menos não houvesse dúvidas:
é aquela hora de bruma e de medo
e a relva, amanhecendo úmida,
tem como raízes vísceras misturadas.
Se ao menos soubéssemos: sob o luar
Joana D´Arc é queimada e ascende
ainda mais translúcida do que a brisa
desfeita pela fuligem – é aquela hora
de árvores inertes e muros ensanguentados.
Se ao menos contemplássemos: arde
a cidade e somos nós os saqueadores,
nós os negros, nós os gregos, nós as troianas
deixadas ao estupro, aterrorizadas
por uma suspeita que jamais se confirma.
O que será esse rumor? Ratos
correndo no forro dos telhados ou torvelinhos
de vento uivando durante a madrugada?
Se ao menos uma palavra nomeasse
a pedra escura queimando o peito –
mas não: é meio-dia, faz sol
e a praça central se afoga em claridade.
 
 
 
daniel francoy
identidade
editora urutau
2016
 




 

12 março 2020

daniel francoy / a lucidez de sancho pança



Ainda hoje, ao encontrar um inimigo
de outrora, abominável assassino,
cumprimentei-o alegremente:
olá, moinho de vento! Reconheço
agora a tua verdadeira natureza
e não te enfrento porque já não carrego
as armas e as loucuras de um velho.
Funciona sempre, amigo, sê
o que verdadeiramente és: moinho
do amanhã, o que transforma a água
em fogo, o que torna leves e aprazíveis
estes nossos ares pestilentos.



daniel francoy
identidade
editora urutau
2016






07 setembro 2019

daniel francoy / latitudes




Fala-me Conrad de um tempo,
ou melhor, de uma latitude
que ultrapassada impede
qualquer regresso –
como se o destino de um homem
fosse descer por uma luz vacilante
degrau após degrau.

Sujamo-nos, não há outro caminho
que não seja ter as mãos sujas.
Sujamo-nos e são as mãos sujas
o último elo a romper-se.
Por elas passa o ouro conseguido
a um custo indizível,
o perfume de amores enlouquecidos,
as flores que colhemos quando
muito jovens ou muito cansados.
O último elo a romper-se porque
da luz mais gasta permanece o pólen.




daniel francoy
identidade
editora urutau
2016







17 janeiro 2019

daniel francoy / 30




Tornei-me o recatado bluesman:
o homem que ainda busca Ítaca
mas não em águas fecundas para o heroísmo.
O homem que apenas busca Ítaca
na repetição dos gestos
na magreza dos afetos
no lento pisotear com que o tempo
transforma o rosto do meu pai
no rosto de um morto e o meu rosto
no rosto de outro homem.
As tardes – aqui, no México, em vilarejos
onde os corpos terminam
como manchas de bolor em frias paredes –
as tardes são tudo o que um homem
pode ultrapassar.

  

daniel francoy
identidade
editora urutau
2016









18 abril 2018

daniel francoy / pássaros




Ando a falar de pássaros
como se não os tivesse afugentado
do quintal e do peitoril da janela,
como se soubesse que ave é aquela
– seria de rapina? – que vejo
em torno dos arranha-céus
há tantos anos.
Sempre a mesma criatura?
Alimenta-se do que lhe resta,
dorme na praça, entre as árvores
e a fonte de água escura
ou vejo toda uma descendência
alada, caída no desterro,
assinalando a distância da tarde?


daniel francoy
identidade
editora urutau
2016