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12 junho 2023

jorge melícias / nisto de procissões pouco conta o santo

 



 
Nisto de procissões pouco conta o santo,
vale a qualidade do processionário.
Ao mais diligente caudatário
que importa a chavasquice do manto?
 
Para bom prelado serviçal e meio,
o resto só maledicência, pasto para pábulo.
A cada asinino o que lhe convém por estábulo
e a cada escrúpulo o seu próprio tenteio.
 
Antes do pombo a rola e depois ainda há o torcaz,
(ah, a columbófila loquacidade dos ângulos…)
vê bem por onde engordar até primaz!
 
Acautela, pois, da consciência os longos preâmbulos,
que a pródiga rapina ficou lá para trás
e este é verdadeiramente o recreio dos fâmulos.
 
 
 
jorge melícias
eu morrerei deste século às mãos de quem? (2018)
a oratória dos mansos
porto editora
2020
 



14 junho 2022

jorge melícias / dos melhores somos o mero rebotalho

 




 
                                    ao Pedro Gil-Pedro

 

Dos melhores somos o mero rebotalho,
as rombas aparas de uma coragem
que nunca ousámos reclamar. A triagem
que existe entre rugido e chocalho.
 
Somos da sua inteireza o retalho,
a honra que se garante pelo menor preço.
E o contrário dessa honra, o avesso,
se o avesso nos inspira algum ganho.
 
De toda a fátua vileza perorada
não valemos a cerda, quanto mais a pluma.
Tudo em nós está bom é para caruma
quando a chama não se afeiçoa a mais nada.
 
E ardêssemos! Não como vida que em cinza se chatina
mas como morte que da morte pelo fogo se amotina.
 
 
 
jorge melícias
o recreio dos fâmulos
guerra e paz editores
2021
 




05 dezembro 2020

jorge melícias / todo o horror é uma interpelação à beleza

 
 
Todo o horror é uma interpelação à beleza.
E só à beleza vai buscar o seu referente.
 
Tudo o mais deverá ser imputado a quem vê:
a rapina
de um campo de batalha
 
ou os mastins
cruzando a ternura da devastação.
 
 
jorge melícias
felonia (2013)
a oratória dos mansos
porto editora
2020

 



25 julho 2020

jorge melícias / debruçado sobre a benevolência dos séculos



Debruçado sobre a benevolência dos séculos
o cronista outorga mesuras e desdouros,
intende a blandícia da cautela,
a pua retraída do orgulho.
E a história é um animal acocorado
sob a lisonja do aparo.


jorge melícias
a oratória dos manso (2017)
a oratória dos mansos
porto editora
2020












28 maio 2020

jorge melícias / lembro-me dos anjos da dirimição


Lembro-me dos anjos da dirimição.
E de como pela fome
os homens
falqueavam a culpa
até aos ossos.

Era a guerra, asseveravam,
e à força cénica
desse horror
em movimento
chamavam deus.

Mas há muito que a penúria
desertou desta paisagem:
aqui já nem o desespero faz fé.



jorge melícias
felonia (2013)
a oratória dos mansos
porto editora
2020






08 fevereiro 2020

jorge melícias / os dedos batem o nome



Os dedos batem no nome e estacam.
Não há profundidade depois disso.
Queria emergir magnífico
do meu fôlego,
cantar sob os foles da língua.
Digo que todo o nome é dançado,
que freme como tocado de dentro.


jorge melícias
a luz nos pulmões
quasi
2000











11 agosto 2017

jorge melícias / ela senta-se sobre a quilha dos teares



Ela senta-se sobre a quilha dos teares
obscurecendo o mundo.

Uma estaca levantada na cegueira.

É enorme a precisão dos dedos
sobre o fogo



jorge melícias
o dom circunscrito
quasi
2003




30 junho 2016

jorge melícias / à beira das salinas os homens declinam,



À beira das salinas os homens declinam,
as cabeças como cometas fulminantes.

De longe a longe vêm os filhos,
trazem a solidão como um metal aceso nas costas,
trazem um enxame de dardos.
E a memória é um pulso atravessado.

Quando partem fecham atrás de si as portas,
e os homens voltam a sentar-se sobre as estacas
e brilham.


jorge melícias
a luz nos pulmões
quasi
2000



29 novembro 2009

jorge melícias / iniciação ao remorso








Procurou de entre todos aquele que mais amava.
Fê-lo em silêncio, afagando os cães
que envelheciam aos seus pés,
enquanto as mulheres iam cerzindo nos gestos
um rosário de sal.
Onde está o meu discípulo dilecto
que não o vejo, inquiriu.
Um homem lembrou-lhe então que partira
há muitas luas atrás,
carregando aos ombros um navio em chamas.

Desde esse dia a memória
não mais deixou de rondar a casa,
e o velho recolheu-se no jardim onde as estátuas
subiam às árvores com os olhos tão próximos da loucura.







jorge melícias
iniciação ao remorso
a mar arte
1998