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19 abril 2023

josé tolentino mendonça / os incêndios

 



 
Não devias empurrar fogo tão solitário
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas
 
a sombra uma vez avulsa
não retorna a mesma
 
não despertes o que não podes calar
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 




04 junho 2022

josé tolentino mendonça / restos de chuva

 
 
Traz um lírio seco cravado nas costas à traição
a morte do pai em certos nomes
consumida na meteórica duração
que permitia aos cigarros
a distância terrível de si mesmo
até as pequenas as mais inocentes viagens agravavam
a dor de ter um corpo um sabre herdado
sobre o monte de livros de roupas e de súplicas
 
Na fotografia com um grande sol prateado
e um caminho de cartão que depois nunca percorrera
o pai estava à sua frente e não se via
a inclinação ténue dos seus olhos
 
Agora os filmes e os remorsos ocupavam-lhe as tardes
comboios errados em que propositadamente se metia
para fugir não da sombra mas da luz calma da luz pura
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 



20 fevereiro 2021

josé tolentino mendonça / a estrada branca

 
 
Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto
 
folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
 
Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate
 
 
 
 
josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005

 





10 julho 2020

josé tolentino mendonça / um pequeno tremor



A sua morte não passou de um pequeno tremor
as fúrias gritavam
mas ao longe
dentro das câmaras onde esses gritos
de aranha não se escutam

A sua grandeza era uma quase indiferença
aos desastres

No cimo de si próprio
sustinha objectos improváveis
caminhava pelo fogo
sem desordem
sem desejo doutro passo
uma forma de pudor era nele
a acalmia

sem ele saber as palavras
deslizavam para um lugar sem perigos
mas também sem palavras



josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006






13 junho 2019

josé tolentino mendonça / escarpas



Cruzámos os dias de Verão
o destino perseguia-nos com um ímpeto relutante
a listar calamidades
numa ascensão
por escarpas que tínhamos julgado a salvo


Corríamos o litoral com a nossa turbulenta forma
ou deixávamo-nos imóveis a ponto de parecer mortos
entre beleza, sobreposição e perigo
sem grande esclarecimento
a noite despenhava-se
no silêncio da corrente


O vento do mar já conseguiu acalmar muitos corações
mas os nossos não


josé tolentino mendonça
estação central
assírio & alvim
2012






10 maio 2019

josé tolentino mendonça / calle principe, 25




Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou



josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006






04 junho 2018

josé tolentino mendonça / o tempo




O tempo perfura portas cerradas
biombos, tabiques e lapsos
um rangido de ferrugem velha
a mercadoria imaginária que tenhamos

insectos erram de planta em planta
um feto desdobra as grandes folhas
estranhamente espaçosas
nesta estação

A lua sobe no céu
lavado de fresco pelas últimas trovoadas



josé tolentino mendonça
estação central
assírio & alvim
2012







03 maio 2018

josé tolentino mendonça / ardis




A incompreendida figura do amor
a céu descoberto sem que se exprime
rodeamo-nos de vinganças, medidas, ardis
e enchemos os livros da ardente ausência
de nós próprios

Ao entardecer corremos
ao pontão sobre o mar
e a vida só se parece
com alguma coisa que sabemos



josé tolentino mendonça
a que distância deixaste o coração
assírio & alvim
1998








12 agosto 2017

josé tolentino mendonça / concerto dos tindersticks



Impossível dizer até que ponto
a rapidez de tudo
atinge as paisagens na sua certeza
o significado dos instintos
desde muito cedo
os modos de travessia, os receios
imagens em que não pensamos

pela noite tua voz descreve
isso de nós que não tem defesa
um amor
largado às sombras, irreconhecível
até de perto

dizem que se tratou de
derivas, ingenuidades, ilusões
o teu amor é um nome qualquer
que parte


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999





01 junho 2017

josé tolentino mendonça / o grito




Dos dias, sim, mas das noites
quem pergunta pelo nome
essas flores selvagens
(seriam flores?)
trazidas  pelo teu assobio

A beleza nunca é clara
o modo em que se aproxima
Somos com certas coisas
um mundo ainda terrível
incapaz de explicações
sem nenhuma das certezas
mesmo aquelas, ínfimas, que sustentam
uma palavra, um olhar ou um grito

Só resta a maneira
mais pura:
de igual para igual
tão desconhecidos


josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001






10 fevereiro 2017

josé tolentino mendonça / os amigos




Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura


Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001




20 maio 2016

josé tolentino mendonça / cinza do lume



um rosto a quem dói ser  sua própria cicatriz
cinza do lume perfeição ferida
um pássaro sublime apressado para a morte
era assim que definia o verso

ruína ou magnífica alusão que tocou
com essa espécie de coração negro
que serve
a consumação de uma arte


josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997



01 dezembro 2015

josé tolentino mendonça / os girassóis



Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens

Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001



04 agosto 2015

josé tolentino mendonça / reis magos


Uma mesa de plástico, branca
junto da tarde que morre
e renasce por pequenas paixões 
de repente estávamos sozinhos
as ilhas muito inacessíveis
agora que escureceu
o menor desejo teria um sentido delicado
os olhos velozes de um gato
viam coisas belas
lado a lado com os homens
pareciam quase não ter sofrido

a mesa estava encostada às janelas do café
e nós de forma desolada
ignorados, aturdidos, de passagem
não muito mais

procuro desse facto uma versão
que me não conduza à inconfidência

era uma mesa lisa, branca
uma razão soletrava ao acaso
a medida soberana do incerto

olhos velozes de um gato os teus
olhos


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999





03 maio 2014

josé tolentino mendonça / não deixeis um grande amor



Aos poucos apercebi-me do modo
desolado incerto quase eventual
com que morava em minha casa

assim ele habitou cidades
desprovidas
ou os portos levantinos a que
se ligava apenas por saber
que nada ali o esperava

assim se reteve nos campos
dos ciganos sem nunca conseguir
ser um deles:
nas suas rixas insanas
nas danças de navalhas
na arte de domar a dor
chegou a ser o melhor
mas era ainda a criança perdida
que protesta inocência
dentro do escuro

não será por muito tempo
assim eu pensava
e pelas falésias já a solidão
dele vinha

não será por muito tempo
assim eu pensava
mas ele sorria e uma a uma
as evidências negava

por isso vos digo
não deixeis o vosso grande amor
refém dos mal-entendidos
do mundo



josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997






03 março 2014

josé tolentino mendonça / murmúrios do mar



"Paga-me um café e conto-te
a minha vida"

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
e uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu , não, nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
Que derruba primeiro no nosso corpo
Tudo o que seremos depois

"pago-te um café se me contares
o teu amor"


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



30 agosto 2013

josé tolentino mendonça / o último dia do verão



Pois às vezes me falta a quem contar
certo dia passado do princípio ao fim
o encanto que tenha realmente
a insistência do vento ao longo da Foz
aquilo que daria (e eu daria tudo) por compaixão

Nascemos e vivemos só algum tempo
não temos nada
não podemos mesmo na penumbra
decidir a atenção ou o esquecimento
as forças soçobram como vagos motivos
em público
e em qualquer lugar

Por isso sei tão bem o valor
da natureza indiscutível dos teus olhos
onde a luz anota seus aspectos
teus olhos impacientes e irrealizáveis
que me acompanham
agora que sozinho danço
pela cidade vazia



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001


03 agosto 2013

josé tolentino mendonça / esplanadas



Um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo

por vezes é tão criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura, uma alegria



josé tolentino mendonça
a que distância deixaste o coração
assírio & alvim
1998


27 fevereiro 2013

josé tolentino mendonça / anjo da guarda



Ele é o meu anjo
ele vem do escuro
a embarcação em chamas
desce o canal!

Se a mulher adormecida nas margens
alongasse os braços
os remos da embarcação bateriam
nos astros

Há uma janela donde tudo se vê
o ordenado campo da casa
os atalhos cheios de giestas
e o meu anjo avança veloz

Um bêbado acena e grita
mas já é tarde para salvar-me
à conspiração do lume



josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997



05 janeiro 2013

josé tolentino mendonça / a presença mais pura




Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
"a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?"

a altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um "não esquecer" fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome

ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
"a que distância deixaste
o coração?"




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999