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16 abril 2023

luis alberto de cuenca / sem medo nem esperança

 
 
E de repente voltas do inferno
com um fato de gala impressionante
que recorda o que Dale Arden usou
quando Ming, o cruel, foi derrocado.
Fitámo-nos ambos nos olhos como
se fosse o primeiro dia da História.
E bailámos, bochecha com bochecha,
trasladados a um mundo sem amanhã
nem ontem, ardendo numa fogueira
de plenitude, como anjos rebeldes
que acabam por levar a sua avante
perdendo a batalha, como sombras
que, na vitória do amor, sem silêncio
se dizem, sem medo nem esperança,
as palavras que nunca se disseram.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018




05 janeiro 2023

luis alberto de cuenca / só o silêncio salva

 



 
Só o silêncio salva, companheiro.
Só o silêncio salva. Se tiveste
uma noite gloriosa em que Afrodite
te sorriu e Baco te foi enchendo
o copo sem cessar, pensa que em breve,
quando se desvanecer o escuro,
os teus amigos forem para casa
e amanhecer de novo, só o silêncio
te há-de salvar, rapaz. Tem isso em conta.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018





02 outubro 2020

luis alberto de cuenca / in illo tempore

 
 
Os teus pais tinham ido não sei onde
e a casa ficara só para nós,
como aquele convento abandonado
do poema de Jaime Gil de Biedma.
Com a música no máximo, fizeste
uma mistura explosiva num jarro
enquanto eu te tirava, docemente,
a roupa da cintura para cima.
Encheste dois copos até ao topo.
Bebemos. Veio aquele riso parvo,
e ficámos com um brilho nos olhos
que sublinhava a nossa juventude,
e então beijámo-nos como nos filmes,
e amámo-nos como nas canções.
 
Quando a realidade era o desejo
e o nosso reino não era deste mundo.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018





19 maio 2020

luis alberto de cuenca / penso em ti



Os amantes pensam-se. Cada um
pensa que pensa muito mais no outro
que o outro nele. Estão centrados
no seu ofício pensante e não notam
os fios invisíveis com que o medo
vai enredando as suas reflexões
e matando o amor. Só o esquecimento
poderia resgatá-los dessa dúvida,
mas não estão dispostos a esquecer-se.


luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018








31 agosto 2019

luis alberto de cuenca / happy family




O pai é corcunda e elegante,
magnânimo, discreto, compreensivo.
Recebe no castelo os filósofos
que não suportam o ancien regime,
enquanto a esposa, vinte anos mais nova,
manda servir o chá, vestida apenas
com o colar de pérolas que lhe trouxe,
do seu périplo pela Austrália, Cook.
Têm um filho loiro, tão cientista
ele, está destinado no futuro
a caçar borboletas por hipnose,
ou a dar uma seca na sociedade
geográfica, ou a fazer-se íntimo
de Cuvier ou Champollion. Dá-se
francamente bem a família, vê-se
por aquele costume da senhora
de lambuzar de chocolate o filho
todas as tardes sendo sete em ponto
– a nova hora taurina –,  face ao cúmplice
e orgulhoso olhar do seu paizinho.



luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018






11 julho 2019

luis alberto de cuenca / aniversário




Não lamento o partires quando partiste – se todas
da minha vida partem, mais cedo ou mais tarde – ,
mas que continues a partir sempre que lembro
que não estás comigo, que é por exemplo agora.
Lamento que o filme da tua partida seja
na minha imaginação um tema recorrente
e que não haja neste mundo mistura química
capaz de me transportar ao reino do olvido,
onde tu não partes.




luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018






23 maio 2018

luis alberto de cuenca / a casa da minha infância





Fui feliz naquela casa repleta de flores
e de livros proibidos. A casa em que tu eras
Ginevra nos nossos jogos, e eu era o rei Artur
(não havia Lancelote para arruinar tudo).
A casa onde foste donzela das minhas ânsias,
senhora dos meus suspiros, muralha em meu peito,
cofre do meu tesouro, brinde dos meus soldados.
A casa que tinha uma arca misteriosa
que guardava o segredo da sabedoria
e do amor eterno, e a droga da fé,
a taça do esquecimento, o cálice da coragem.
A casa onde, à tarde, com sonhos partilhados,
enquanto a roupa dourava ao sol lá na varanda,
te nomeei soberana de um reino em que a noite
não existia e a morte não ditava as leis.



luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018






23 dezembro 2014

luis alberto de cuenca / os gigantes de gelo



Os Gigantes de Gelo tornaram a visitar-me.
Não em sonhos. À luz do dia. Com elmos
reluzentes e o rosto selvático e maligno.
Senti tanto medo que nem fui capaz de dizer-lhes
que tinhas partido. Investigaram tudo,
amaldiçoando a hora em que Deus criou o mundo,
jurando pelos dentes do Lobo e pelas fauces
do Dragão, cuspindo terríveis ameaças,
blasfemando e destruindo os livros e os discos.
Ao ver que tu não estavas, foram-se, não sem antes
garantir que dariam com o teu novo esconderijo
e serias sua escrava até ao fim dos tempos.
Onde estejas, meu amor, não lhes abras a porta.
Ainda que se façam passar por homens de minha confiança
e te garantam que sou eu que os envia.


luis alberto de cuenca
tradução de manuel rodrígues 




09 março 2013

luis alberto de cuenca / mal de ausência




Desde que partiste, não sabes como devagar
passa o tempo em Madrid. Vi um filme
que terminou apenas há um século.
Não sabes que lento corre o mundo sem ti, noiva distante.

Os amigos pedem-me que volte a ser o mesmo
que o coração apodrece de tanta melancolia,
que a tua ausência não vale tanta ansiedade inútil,
que pareço um exemplo de subliteratura.

Levaste, porém, a minha paz na tua bolsa,
os fios do telefone, a rua em que vivo.
Mandaste a minha casa tropas ecologistas
saquear-me a alma contaminada e triste.

E, para cúmulo, continuo a sonhar com gigantes
e contigo, despida, beijando-lhes as mãos.
Com deuses a cavalo que destroem a Europa
e cativa te guardam até que eu esteja morto.



luis alberto de cuenca
tradução de manuel rodrígues



22 novembro 2010

luis alberto de cuenca / abre todas as portas







Abre todas as portas: a que conduz ao ouro,
a que leva ao poder, a que esconde o mistério
do amor, a que oculta o segredo insondável
da felicidade; a que te dá a vida
para sempre no gozo de uma visão sublime.
Abre todas as portas sem te mostrares curioso
nem ligar nada às manchas de sangue
que salpicam as paredes das habitações
proibidas, nem às jóias que revestem os tectos
e aos lábios que na sombra procuram os teus,
nem à palavra santa que espreita nas ombreiras.
Desesperadamente, civilizadamente,
contendo o riso, secando tuas lágrimas,
no extremo do mundo, no final do caminho,
a ouvir como assobiam as balas inimigas
em volta e como estão cantando os rouxinóis,
não duvides, irmão: abre todas as portas.
Embora não haja nada dentro.






luís alberto de cuenca
tradução de josé bento
canal revista de literatura nr.5
janeiro de 1999
palha de Abrantes