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18 julho 2023

yvette k. centeno / primeiro tempo

 
 
 
Os amantes têm de ser terrivelmente inconscientes.
Porque se conhecem o mistério perde-se o sentido e o amor
e apesar de amantes ficam absurdos e cansados.
Assim se diluíram num beijo, momento sem limite dentro deles.
Assim ficaram longas horas estendidos um no outro.
Assim deixaram que os outros, os alheios, corressem de amanhã em amanhã
e só eles ficaram imóveis no passado.
Assim se esqueceram de si próprios, como um relógio muito velho
sem despertador.
Os ponteiros andavam ao contrário e não ultrapassavam nunca a Hora.
 
 
 
yvette k. centeno
opus 1
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019
 



02 agosto 2022

yvette k. centeno / o café

 
 
 
Sentadas nas mesas do café
as pessoas olhavam sem ver bem
e nos olhos de cada uma iam passando a sério
os ódios pequeninos quotidianos
como um enterro de terceira classe lento
e grave
seguido por dois cães de luto
e um chapéu funerário sem cabeça
 
 
 
yvette k. centeno
opus 1
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019




 

14 abril 2022

yvette k. centeno / querer e poder


 
 
Julgamos fazer o que queremos
mas só fazemos o que podemos
 
Vivemos entre os espaços dados
mas morremos em buracos
 
as pequenas feridas
que o tempo vai alargando
 
umas são de mais longe
outras ao nosso lado
 
 
 
yvette k. centeno
existir
eufeme
2022



 

29 agosto 2021

yvette k. centeno / mediterrâneo

 
 
 
Mais um naufrágio,
quase de mil pessoas
querendo escapar à morte,
morrendo ali afogadas
nas águas traiçoeiras:
tanto corpo
para tão pouco peixe
quem os comer,
nas esplanadas felizes,
não morrerá do veneno
de tanta dor
tão negra?
 
 
 
yvette k. centeno
poemas com endereço (2010-2018)
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019





 

17 maio 2021

yvette k. centeno / ouvindo satie, em paris

 
 
 
Saudades de Paris.
Para mim nunca choveu,
nevava
pequenos flocos de nuvens
na janela.
 
Fui feliz,
nesse tempo,
amava
e nada me apressava.
 
 
 
yvette k. centeno
dizer
edições eufeme
2021



 

12 abril 2021

yvette k. centeno / venho

 
Venho
com as mãos carregadas
de passado
venho agora
porque não sei o dia
nem a hora
e dentro de mim o tempo
está parado
 
 
 
yvette k. centeno
o barco na cidade
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019






 

19 dezembro 2020

yvette k. centeno / fim do ano

 
 
 
devolvo-te ao sonho
e à palavra
se é sonho
e se é palavra
o que desejas
 
devolvo-te
a ti mesmo
se acaso
te procuras
 
desvio a luz
para que olhando
vejas
 
 
 
y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984

 




12 novembro 2020

yvette k. centeno / caminho

 
 
devagar cortei-te o pulso
 
percorri esse caminho
dentro das tuas veias
 
enquanto o sangue saía
abria portas de entrada
 
eu avançava ao contrário
dentro de ti me perdia
 
o amor não era mais nada
 
 
 
yvette k. centeno
perto da terra
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019

 



04 abril 2020

yvette k. centeno / shepperton



no rio
só peixes solitários
só uma lua
a que nunca se vê
só barcos sem pessoas
só água sem maré



y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984










20 janeiro 2020

yvette k. centeno / e as mulheres



E as mulheres
são quase todas brancas
e vermelhas
e todo o dia
esperam pela noite
e quando é noite
acendem-se nas ruas
e esperam
novamente

Persegue-nos a lua
na cidade marítima
de noite

Em cada canto
a lua
persegue toda a gente



yvette k. centeno
o barco na cidade
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019






14 setembro 2019

y. k. centeno / o sótão




o sótão: inacessível
nunca mais verei os livros
nunca mais irei lá acima
(eu tenho medo das arcas
eu tenho medo dos ratos
que guardam o impossível)



y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984










29 janeiro 2019

yvette centeno / o teu discurso




O que dirias
perante a flor do cacto japonês?
Que é flor
e que o ser flor te perturba
e mais ainda
só floresce uma vez.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998






08 dezembro 2017

yvette centeno / relato




Da paisagem da sombra
não te direi mais nada.

Percorre-se.

Em cada canto
um abismo.

E entre o pasmo
e o riso

caem pessoas
mortas.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998






29 novembro 2016

yvette centeno / algol



Primeiro pegarei
nas tuas mãos
procurando os sinais
de difícil leitura:
cefeidas
supernovas
planetas exteriores
em que pulsa
a memória
em que o destino
quebra
e a morte se introduz
como estrutura.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998




07 setembro 2016

yvette centeno / morangos silvestres



Cóleos begónias avencas
aprendo o nome das plantas
e de manhã como fruta
(não era o que tu dizias?)
antes de tomar café.

Mas a seguir ao café
sobra-me um dia comprido.
Não sei que fazer sem ti
(não há morangos silvestres)

não sei que fazer comigo.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998



15 abril 2016

yvette centeno / em setembro, no algarve



Deito-me no muro do quintal.
Aguardo o pôr do sol
quando os pássaros cantam
e a terra exala um cheiro quente
a caruma e tojo.
No meio das árvores
a romãzeira florida parece descansar.
Chegou ao fim do seu dia.
Olho o sol.
E eu
quando chegarei eu?

  

yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998



14 maio 2015

yvette centeno / cantiga de amigo



Leva-me à catedral de Chartres
ver os Anjos de pedra

ver os arcos
lugar de mutação

abraça-me a um canto

ou deixa-me
sozinha

aprender a lição
que a pedra ensina

não a eternidade

a solidão.




yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998





08 outubro 2009

yvette k. centeno / o rei




I


conta-me


conta-me entre as amêndoas


entre as mulheres
que é preciso
depor
aos pés
do rei


conta-me
torna-me
amarga


faz-me saber
mais
do que sei






yvette k. centeno
poesia do mundo
organiz. maria irene ramalho de sousa santos
edições afrontamento
1995




08 fevereiro 2008

restaurante






Leva-me outra vez para a mesma mesa
onde fico de costas para a janela
onde o tempo me esquece
onde nada me toca
o teu gesto protege
o teu corpo separa
a água que me dás
interrompe a memória


Só à porta da rua
o tempo reaparece.








yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998





20 março 2007

a árvore





Chegaste
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram...
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.







yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998